quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Revolta dos Malês - 1835




                         
                                                                        
                                                   Amuleto Malê


A revolta dos malês marcou significativamente a história brasileira e é prova concreta da luta dos escravos contra o sistema escravocrata. 


Durante muitos anos a historiografia silenciou-se quanto às lutas, revoltas e resistências promovidas por escravos, o que contribuiu para criar um imaginário errôneo de que os escravos brasileiros se conformavam com a situação a que eram submetidos.

Segundo Gilberto Freyre, “desde logo salientamos a doçura nas relações de senhores com escravos domésticos, talvez maiores no Brasil do que em qualquer outra parte da América” (1963, p. 12).

Esta célebre frase expressa com clareza a visão que perpassava e ainda se faz muito presente na historiografia da escravidão brasileira, admitindo uma harmonia nas relações sociais entre senhores e escravos, sobretudo se comparada a de outros países escravistas.

Até a partida de Dom João VI em 1821, as leis criminais que vigoravam no Brasil eram as do 
                 
                                              Página de rosto da edição princeps  do Código Filipino de 1603.

No entanto, as leis eram editadas pela polícia sob um regime totalmente absolutista.
Para se ter uma idéia da brutalidade das normas no Brasil, é emblemática a comparação com um relatório do estado de Virgínia, Estados Unidos, em 1825, onde o maior castigo a um escravo consistia em 39 açoites pelo furto de um par de botas:

Para efeito de comparação basta observarmos como eram punidos os escravos no Brasil em relação aos nos EUA As penas eram brutalmente severas, por menores que fossem as infrações, até mesmo pelo padrão das décadas seguintes e em comparação com a escravidão urbana em outros lugares.

Contrastando com a norma de aplicar 100 a 300 açoites por pequenos crimes no Rio de Janeiro, não raro seguidos de vários meses de trabalho forçado em grilhões, vem do sul dos Estados Unidos o seguinte relatório de crimes e castigos de escravos em Richmond, Virgínia, em 1825: “Furto de três dólares, 20 açoites;três cobertores, 15, quatro dólares, 25; vestido de algodão, 15 açoites; par de botas, 39; leito de pernas, 10”.

Se a escravidão no Brasil patrimonial e católico era mais branda do que nos Estados Unidos capitalista e protestante, tal diferença dificilmente se estenderia aos castigos impostos aos escravos urbanos por pequenos crimes”. (op. cit.:55) 



Observa-se que, antes do Código Criminal do Império (1830), eram aplicados entre 100 a 300 açoites para pequenos crimes, pelo Intendente da Polícia e pela Guarda Real. Além disso, no Brasil, os castigos chegavam a assumir o risco de matar o escravo.

Felizmente, novos trabalhos têm sido realizados no sentido de romper com esta visão.

O incessante trabalho de pesquisa realizado pelo baiano João José Reis é um exemplo que mostra a complexidade das revoltas, principalmente a Revolta dos Malês, que assolaram o Brasil nos séculos XVIII e XIX.

Na metade do século XIX, aconteceu na Bahia, segundo o historiador João José Reis (2003, p, 9), “o levante de escravos urbanos mais sério já ocorrido nas Américas” e, ainda segundo ele, “teve efeitos duradouros para o conjunto do Brasil escravagista”. Posteriormente, esse famoso levante seria intitulado de a Revolta do Malês.

Segundo Reis, africanos muçulmanos foram trazidos para diversas regiões das Américas como escravos, e aqui procuraram reproduzir o que puderam e o que mais interessava das práticas islâmicas, de acordo com as quais haviam sido educados.

Não se sabe exatamente quando foi que os primeiros negros islâmicos aqui chegaram. No entanto, os registros anteriores aos do século XIX apontam a chegada de africanos vindos da África Ocidental – alguns eram islâmicos, como os Malinkes.



As origens do islamismo entre os mandingas, nome que segundo Nei Lopes é um nome étnico.
 “Trata-se do nome étnico que inclui um extenso grupo de povos da África ocidental, falantes de línguas aparentadas, pertencentes ao grupo lingüístico Mande(...)(em várias línguas do grupo, a palavra diula significa “mercador itinerante”) (...). Segundo sua tradição, os povos mandingas, construtores do grande império do antigo Mali, são originários da região do Manden, próxima a fronteira ocidental do Mali, no curso superior do rio Níger.

A denominação “mandinga” provém da forma mandingo com que os ingleses, certamente a partir dos contatos com os Mandinka, nomearam todos os povos do grupo lingüístico mandê, que compreende cerca de 10 milhões de pessoas distribuídas por área de aproximadamente 2 mil quilômetros”. Ver Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, por Nei Lopes, 2004, p. 414.
 
Estes, ao chegarem ao Brasil, foram chamados de mandingos. Atualmente na sociedade brasileira é muito comum associarmos a palavra “mandinga” a práticas de feitiçaria.
E os amuletos (também chamados de Patuá) eram formados por sacos de couro, contendo 

                                            
pedaços de papel com inscrições em árabe, de partes de Suratas (versículos) do Alcorão. Era cuidadosamente dobrado e costurado dentro do saquinho. Apesar dos africanos usarem 
                                       
esses amuletos, isso não é uma prática islâmica.

Era habitual entre o povo Mandinga, por seus conhecimentos o uso de ervas medicinais e a existência de mágicos encantadores. 
Muitos deles foram trazidos para o Brasil no período do Tráfico Negreiro. Quando a palavra mandinga em português passou a significar magia, feitiço.

Embora não se tenha notícia detalhada de sua presença no Brasil, estes africanos deixaram rastro inconfundível nos amuletos coloniais, chamados bolsas de mandinga, ou simplesmente mandinga – termo que era usado em certos contextos, equivalia à feitiçaria, como já mencionado acima.

Esta percepção errônea, devemos imputar ao baixo grau de desenvolvimento cultural da sociedade escravocrata, com resquícios na atual, pois, grande parte dos negros muçulmanos era letrada, pois está na base do Islamismo primar pelo conhecimento e pela educação.

Também, alguns autores chegam a citar que, durante o século XIX, houve uma grande venda de Alcorões no Rio de Janeiro, e todos escritos em árabe e vendidos para escravos e ex-escravos, como afirma o Conde de Gobineau (MOURA, 1983, p. 87):
...Malgrado esta aparência, pude constatar que devem guardar bem fielmente e transmitir com grande zelo as opiniões trazidas da África, pois que estudam o árabe de modo bastante completo para compreender o Alcorão ao menos grosseiramente.

Esse livro se vende no Rio nos livreiros ao preço de 15 a 25 cruzeiros, 36 a 40 francos.
Os escravos, evidentemente muito pobres, mostram-se dispostos aos maiores sacrifícios para possuir este volume. Contraem dívidas para esse fim e levam algumas vezes um ano para pagar o comerciante.

O número de Alcorões vendidos anualmente eleva-se a mais ou menos uma centena de exemplares (...).


 A livraria citada pertencia aos livreiros franceses Fauchon e Dupont, que, além de vender Alcorões, também importavam gramáticas em árabe, pois os escravos também se preocupavam em compreender melhor o livro, já que o Alcorão era manuscrito e não um texto traduzido.(COSTA E SILVA, 2003).

                                             

                            Placa de madeira, da Nigéria, para proteger o Alcorão.
 

Vários manuscritos com caracteres arábicos foram encontrados nas casas ou em posse de escravos durante e após a revolta do malês.

Sobre esses manuscritos, há o caso de Rufino José Maria, preso no dia 3 de setembro de 1853 na cidade do Recife, acusado de conspiração, pois já havia fugido da Bahia após a revolta.

Segundo José Antônio Gonçalves de Mello Neto (1992, p. 9), o jornal Diário de Pernambuco reportou a seguinte notícia sobre a prisão de Rufino:

...Foi encontrado de hábito talar (Túnica branca, de mangas longas e que vai até os tornozelos. Roupa típica dos árabes e que hoje é usada diariamente por muitos africanos muçulmanos. Também é chamada de Jal’labia.), tendo em seu poder alguns escritos com caracteres arábicos, idioma que diz ter aprendido em Serra Leoa, sob auspícios ingleses. Além de livros...
Os primeiros fiéis do Islã a chegarem a terras brasileiras trouxeram consigo o Alcorão, ou pelo menos partes dele, em forma de amuletos para serem usados como proteção contra qualquer tipo de inimigo.
(REIS, 2003).

Vale ressaltar que os negros escravizados vinham de regiões intrinsecamente ligadas ao tráfico negreiro, como destaca Vianna Filho.

A região da Costa da Mina foi o principal ponto de partida de africanos escravizados durante o século XVIII e início do século XIX. “Por aí chegaram os negros sudaneses, os jurubas, mas conhecidos como nagôs, os tapas, os bambarras, os hausás, os achantis, os jejes, os bornus,os fulas, os mandingas”.

No prefácio à segunda edição da obra, Gilberto Freire declarou ser sinal da presença sudanesa o caráter revolucionário do baiano — “Eram, evidentemente, os negros da Bahia uma força que não se deixava facilmente humilhar nem docemente dominar pelos senhores brancos” — bem como a beleza estética fascinante da gente sudanesa, a ponto de Freire defender a hipótese da realização de uma seleção estética dentre os africanos que seriam transportados para a Bahia (VIANNA FILHO, 2008, p. 10).

O trecho acima, analisado criticamente não é muito abonador para Gilberto Freyre, e mostra a genêse racial do pensamento reinante entre os formadores de opinião no Brasil, notadamente a época do referido autor.

Os contingentes de negros que chegaram nesse período à Bahia eram, como mencionado acima em sua maioria, Haussás, Fulânis e Nupes (também conhecido como Tapas) e de acordo com Nei Lopes (1988, p.59),em geral eram islamizados, portadores de um grau considerável de escolaridade e consciência Política, com visão e experiência militar, com maior capacidade de organização”.

Essas características dos negros muçulmanos faziam com que eles se sobressaíssem em relação aos outros escravos em vários aspectos.

Foram, indubitavelmente, essas peculiaridades dos negros muçulmanos, juntamente com uma fé religiosa capaz de grandes empreendimentos, que causava fascínio em alguns negros de outras nações, que seria a espoleta que faltava para estourar a mais fantástica rebelião, arquitetada por escravos, das Américas.
Destarte, vale citar as origens do islamismo entre os africanos.

Sobre o Islã


O Islã chegou à África por volta dos séculos VII e VIII, penetrando primeiramente na região norte, passando pelo Saara, Argélia, Tunísia, Egito e Líbia. Posteriormente, desce para as regiões subsaarianas, como o Senegal, Cabo Verde, Mali, Gâmbia, Guiné-Bissau, Níger, Guiné-Conacri, Serra Leoa, Costa do Marfim, Libéria, Burkina Faso, Benin, Nigéria, parte do Camarões e parte do Chade (LOPES, 1988).


O Mali e os mandingas

(Trecho da Revista Historiador Especial Número 01)


As origens do islamismo entre os mandingas não são mapeadas facilmente.

Encontramos nos relatos dos viajantes Al-Barki, do século XI, e Al-Idrisi, do século XII, as

referências mais antigas a cerca da existência do Mali enquanto entidade política, ambos registraram-no com o nome de Malel.

Al-Barki afirma que o soberano do Malel já havia se convertido ao islã quando de sua passagem pelo Sudão ocidental.

A prosperidade comercial da região, propiciada pelo desenvolvimento das rotas transaarianas que tinham por destino a savana sudanesa, favoreceu o surgimento de diferentes formas de estruturas políticas na região.

A necessidade de proteger os roteiros do ouro, o aumento do comércio e o contato com o maometanismo contribuíram provavelmente para desenvolver os mecanismos de mando.

Grupos de vilarejos achegados passaram a se vincular ao que hoje se chama kafu e a reconhecer a autoridade política e religiosa de um chefe, o mansa “Título do soberano do Mali”, senhor da terra e da chuva, liame entre sua gente e o divino.

Os kafus cumpriram importante função no processo de formação de tais estruturas políticas, estando intimamente ligadas ao “urbanismo primitivo” característico da região do Níger.

Roland Oliver, baseado nos estudos de Yves Person, afirma que a unidade básica de assentamento da população nuclear do futuro Mali era o kafu, que “consistia de uma cidade

                                  
 murada com suas terras de cultivo, seus alqueires e suas florestas, que devia contar com uma população que variava entre mil e quinze mil habitantes”. Formando estruturas políticas de pequena escala, sua organização dependia do exercício de um poder que ia além das relações familiares, ou de linhagem, pois a “transformação mais essencial efetivada pelo modelo urbano de assentamento, residiu no fato de que povos de diferentes linhagens tiveram que organizar os meios políticos, que lhes permitissem viver juntos em organizações próximas umas das outras”.

As formações políticas localizadas no alto Níger (provavelmente, conjuntos de kafus), que poderíamos entender como pequenos reinos, passaram por um processo de unificação durante os séculos XI e XII sob a ação de um dos clãs da nobreza mandinga: os Keitas.

O reino congregava vários clãs, sendo o rei, frequentemente, um chefe de clã que impôs sua autoridade a outros clãs; é o caso do clã Keita, fundador do Império do Mali (século XIII).

Originários da região localizada na confluência do rio Sancarani com o rio Níger, os Keitas,

provavelmente no início do século XII já comandavam um grande país que se estendia do Sancarani até o Buré.


Seriam eles grandes caçadores, líderes de sociedades secretas, portadores da sabedoria dos bosques e das florestas.

A primeira força militar mandinga era formada por caçadores. Alegavam descender de Bilali Bunama, o companheiro negro de Maomé e o primeiro almuadem do islã, que teria vindo de Meca e se estabelecido no país mandinga”, segundo a tradição, seu neto Latal Calabi possuidor do título de mestrecaçador, ou simbon, estabeleceu a dinastia Keita , precurssora do império Mali.
O filho deste, Lailatul Calabi, teria feito à peregrinação a Meca.


Após a queda de Koumbi Saleh, capital do Gana, sob a ação dos almorávidas na segunda metade do século XI, o sudão ocidental conheceu período de ausência de um poder hegemônico de fato na região.

Vários pequenos Estados expandiram-se em detrimento do poderio do Gana.

Os Sossos estabeleceram uma hegemonia efêmera na região ao final do século XII, quando já não se encontravam na condição de vassalos do Gana.

O Estado Sosso, que segundo a tradição, era comandado por uma dinastia constituída por um clã de ferreiros, pelo início do século XIII tinha como soberano Sumaoro ou (Sumanguru) Kante

Sumaoro Kante (fonte: África do século xii ao século xvi - pág 142- 143 - Coleção História Geral da África da UNESCO)


As tradições orais mandenka (mandingo) relatam as façanhas de guerra de Sumaoro Kante, cujo reinado se situa entre 1200 e 1235. 

Segundo essas fontes, depois de submeter as províncias soninke, Sumaoro Kante atacou o Manden, cujos reis lhe opuseram obstinada resistência; Sumaoro teria “quebrado” (saqueado) nove vezes o Manden; a cada vez, porém, os Maninka recompuseram suas forças e revidaram o ataque. 
Após a morte do rei Nare Fa Maghan, seu filho mais velho, o mansa Dankaran Tuman, entendeu ser mais prudente compor –se com Sumaoro Kante.


Para melhor marcar sua submissão, deu -lhe em casamento a irmã, a princesa Nana Triban; a autoridade do rei de Sosoe estendia -se a todas as províncias outrora sob o domínio de Gana, com exceção do Manden.

As tradições orais enfatizam a crueldade de Sumaoro Kante: ele fez reinar o terror no Manden a tal ponto que “os homens já não se atreviam sequer a conversar, de medo que o vento levasse suas palavras ao rei”.

Sumaoro Kante atemorizava os povos tanto pela força militar quanto pelo poder mágico; com efeito, era temido como grande mago ou feiticeiro. Chamavam -no de Rei -Feiticeiro.

A ele se atribui também a invenção do balafo e do dan, violão tetracórdio usado pelo griot dos caçadores.

Mas é outro aspecto de Sumaoro Kante, inteiramente distinto deste, que nos revelam as pesquisas realizadas entre os ferreiros kante: ao que parece, ele teria tentado suprimir o tráfico de escravos, exercido pelos Soninke com a conivência dos Maninka.

O que há de comum, porém, em todos os relatos, é que Sumaoro Kante foi feroz adversário do Islã – teria vencido e matado nove reis.

Os excessos do Rei -Feiticeiro levaram os habitantes do Manden a se revoltarem uma vez mais.
 
Estes tentaram persuadir o mansa Dankaran Tuman a comandá -los; contudo, temendo as represálias de Sumaoro Kante, o rei do Manden fugiu para o sul e lá fundou, em plena floresta, Kissidugu, a “cidade da salvação”.

No vazio de poder que resultou da deserção do mansa, os insurretos recorreram a Sundiata Keita, segundo filho de Nare Fa Maghan, que então vivia exilado em Nema. (fonte: África do século xii ao século xvi - pág 142)

De Nema, com tropas formadas por contingentes locais cedidos pelo rei, Sundiata retorna ao Manden, reforçando suas fileiras com tropas mandingas. 

                                              
O local da grande batalha entre os exércitos de Sumanguru e Sundiata foi Kirina, provavelmente em 1235 na qual os mandingas levaram de vencida os sossos.

Djibril T. Niani, importante estudioso do Mali dos grandes séculos, analisou as tradições orais, nas quais a batalha é conhecida como uma luta mágica entre dois poderosos feiticeiros, pois na “África Antiga, a magia era inseparável de toda e qualquer ação”, de modo que o evento simboliza a formação do grande Estado mandinga.

Niane expôs que, segundo as tradições, a união mandinga em torno de Sundiata foi selada na Grande Assembléia de Curaçã Fuga, onde os chefes vitoriosos reuniram-se para definir as normas da estrutura política recém fundada. Na assembléia formalizaram a estruturação social do Estado, firmando os seguintes acordos:

a) Sundiata foi proclamado mansa;

b) O sucessor deveria ser escolhido na sua linhagem;

c) Seguindo a tradição antiga, o mansa deveria ser sucedido por seu irmão (sucessão fatrilinear);

d) O mansa foi proclamado o juiz supremo, o patriarca, ou o pai de todos;

e) Os mandingas foram divididos em 16 clãs de homens livres ou nobres;

f) Os cinco clãs de marabus, aliados de Sundiata, foram considerados guardiões da fé;

h) Aqueles que praticavam determinados ofícios, como sapateiros, ferreiros e inclusive os griots, foram divididos em quatro clãs

A linhagem da qual Sundiata fazia parte já se islamizara nas gerações precedentes a sua, e aventou-se que tenha nascido maometano.

Porém, a tradição descreve-o como um soberano ligado a religião de seu povo, ao animismo tradicional voltado aos poderes mágicos, a valorização dos antepassados e as forças da natureza.


As considerações sobre a personagem de Sundiata, bem como os acordos selados na Grande Assembléia, demonstram como a própria constituição do Estado mandinga esteve atrelada a influência islamita junto às estruturas de poder (exemplificada pela presença dos clãs de marabus entre os aliados de primeira hora de Sundiata), e desse modo, seu íntimo apelo junto aos grupos dirigentes desde a sua origem. (Revista Historiador Especial Número 01. Ano 03. Julho de 2010 Disponível em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador)
Os cativos ao chegarem às Américas, não esqueciam que eram filhos de Alá e, assim, mantinham suas práticas religiosas, liam o livro sagrado, criavam relações de identidade com os semelhantes e colocaram em xeque a escravidão na Bahia.
No Brasil há valiosos relatos de presença muçulmana expressiva desde pelo menos o início do século XIX, e estes africanos lideraram diversos movimentos de libertação de escravos.
Denominados normalmente de malês, eram também conhecidos como mulçumis, muxurimum etc.

A expressão malê vem de imalê, que na língua Ioruba significa mulçumano.

Portanto, os malês eram especificamente os muçulmanos de língua Ioruba, conhecidos como nagôs na Bahia.

Os nagôs vinham de uma parte específica da África, qual seja a região sudeste da atual Nigéria e a parte leste da atual República do Benin.

Eram de diversos reinos espalhados por esse território, como Oió, Queto, Egba, Yagba, Ijexá, Ijebu, Ifé entre outros.

Esses reinos durante muito tempo viveram sob a égide do reino de Oió, embora numa espécie de federação imperial.

Na época do levante de 1835 essa federação dominada por Oió estava em franca desintegração em função de lutas intestinas generalizadas.

Os malês especificamente tiveram sua origem principalmente em Ilorin, que era uma dependência do reino de Oió que se rebelou sob a liderança de Afonjá.

Este homem se aliou aos muçulmanos haussás, fulanis e iorubás contra o alafin, que era o título do rei de Oió.


Essas guerras foram responsáveis pela transformação de milhares dos habitantes locais em prisioneiros, que eram vendidos como escravos aos traficantes do litoral, e daí exportados para a Bahia.(A Revolta dos Malês em 1853 - João José Reis )

É importante ressaltar que existiam outros grupos, até mais islâmicos, como por exemplo, os haussás.

A tensão entre malês e a sociedade baiana era constante.

Suas manifestações de profissão da fé eram severamente reprimidas pela colônia.

Por não ser uma religião de raiz étnica, mas de carácter universal, o islamismo tinha também o potencial de unir africanos de várias origens, retirando dos escravistas a vantagem política de divisão entre escravos. Eles representavam povos unidos por uma mesma fé.


Neste ponto creio que seja interessante colocar um trecho retirado do Alcorão que ajuda a entender os valores que ensejaram a revolta do Malês “O alcorão condena a guerra, mas ensina que, infelizmente, às vezes é necessário lutar contra a opressão e a perseguição para preservar valores dignos. Se há pessoas exterminadas ou expulsas de suas casas, se seus santuários são destruídos, os maometanos têm o dever de empenhar-se numa gerra justa de auto defesa”.(Alcorão 22, 40 –2)

Acrescento também, a apresentação da monografia da qual retirei parte do texto que está abaixo da tradução e que pode ser encontrada em :



LA RÉVOLTE DES "MALES"
Le travail publit! ici est important pour la blbliographie sur la “revolte des Malés" car i1 est le premier a être écrlt. il a paru, criginairement dans la Revue "Anthropos" de Vienne et fut ensuit traduit en portugais et publid dans lu Revue de l'lnstitut de Géographie et d'Histoire de Bahiu.
L'auteur defend la thèse que le mouvement rebelle de 1835 ne possède pus seulement un caractère politique et social, mais révéle également des tmplications religieuses. Etienne Ignace, dans la miniticuese description faite par lui, donne une idde de 1'habílité avec laquelle les "malês*', esclaves musulmans. ont planifié la révolte. I1 témoi g n e aussi de Ieur courage de combattants. Les luttes sanglants ont fini après l'écrasement de la révolte par l'execution des principaux chefes.
A revolta dos “Malês”
O trabalho publicado aqui é importante para a bibliografia sobre a “revolta dos malês” pois, ele é o prmeiro a ser escrito. Ele foi editado originalmente na revista "Anthropos” de Viena e foii em seguida traduzido em portuhuês e publicado na Revista do Instituto de Geografia e de História da Bahia.
A autor defende a tese que o movimento rebelde de 1835 não possuiu somente uma característica política e social, mas revela igualmente suas implicações religiosas. Etienne Ignace, em uma minuciosa decrição feita por ele, dá uma idéia da habilidade com aqueles os “malês”, escravos mulçumanos, planificaram a revolta. Ele afirma também a coragem dos combatentes. As lutas sangrentas que terminaram após o sufocamentoo da revolta com a execução dos principais chefes.

No seguinte trecho Esta monografia, que é uma página incógnita da História do Brasil, é devida às investigações do Padre Ignace (ETIENNE IGNACE ), professor do Seminário Arquiepiscopal da Bahia. Foi publicada pela primeira vez em frances, na revista Anthropos (Viena d’Austria), e vertida em português, com assentimento do autor, por A. S.” , pode-se ler:

A insurreição, porém, que explodiu, na noite de 24 para 25 de janeiro de 1835, na "leal e valerosa cidade de S. Salvador, Bahia de Todos os Santos", não apresentava tão sòmente um caráter político e social; não era um esforço para a conquista da liberdade; revestia, ao contrário, um caráter sobremaneira religioso: era, em uma palavra, uma guerra santa .  
É, pelo menos, o que ressalta dos documentos em árabe que a polícia apreendeu nas casas dos malês.
                                            

entre os papéis apreendidos há um pequeno quadro dividido em 32 partes, contando diferentes números. O autor deste escrito enigmático deu aos números direçóes diversas, provavelmente para tornar a decifração mais complicada. Todo o segredo consiste em que, para evitar equívoco na leitura, deve-se voltar a folha, de maneira a ter sempre à direita uns três pontinhos convencionais. '.' .
 Parece ter sido uma estatistica do número dos males, pertencente a algum chefe.

Uma conta comercial não se escreve desta maneira; um amuleto conteria, tão-sòmente, cifras sagradas.

Além disso, o total dêstes números perfaz 953; acrescentando-se uma média (duas vezes) pelos dois quadrinhos ilegiveis, obtém-se 1011.

Ora, sabemos que o número dos malês era de 1.500 aproximadamente.

Estes papéis, até hoje considerados como verdadeiros enigmas, foram examinados por negociantes maronitas que nada conseguiram, em razão da escritura complicada e berberesca. 

Alguns foram enviados aos mais célebres orientalistas e africanistas alemães, que até então não se dignaram de responder.
Foi-nos, felizmente, possível decifrar êstes documentos que nos patentearam o fim, o plano e os segredos da revolta.”


“Foi escolhida para o levantamento a noite de 24 para 25 de janeiro, em que a população baiana
                  


acorria, como ainda hoje, ao legendário templo do Bonfim, para a popular festa de Nossa Senhora da Guia.”
[..]O plano, como é óbvio, tinha sido maquinado com muita astúcia e habilidade; falhou, porém, em virtude das medidas urgentes e enérgicas tomadas pelas autoridades locais.

Pouco faltou para que a iniqüidade se consumasse e fôsse a Bahia prêsa do saque, da carnificina e do fogo.

Bastaria o descuido de algumas horas na denúncia da conspiração, e tudo estaria irremediàvelmente perdido.”
 
Os rebeldes tinham planejado o levante para acontecer nas primeiras horas da manhã do dia 25, mas, com pode-se constatar, foram denunciados.

É preciso esclarecer que nem todos os africanos muçulmanos existentes na Bahia em 1835 participaram da revolta.

As autoridades, porém, usaram a posse de papéis dos malês como prova de rebeldia e por isso muitos inocentes foram presos e condenados.

Os malês receberam diversos tipos de sentença.

Foram elas: prisão simples, prisão com trabalho, açoite, morte e deportação para a África.

Esta última pena foi atribuída a muitos libertos presos como suspeitos, mas contra os quais nenhuma prova definitiva foi encontrada.

Mesmo assim, apesar de absolvidos, foram expulsos do país.

A pena de açoites variava de 300 até 1.200 chicotadas, que foram distribuídas ao longo de vários dias. 
O idoso Pacifico Licutan foi sentenciado a 1.200 chibatadas.

Sabe-se de pelo menos um condenado que morreu em decorrência desta pena de tortura, o escravo nagô Narciso.
A pena de morte foi imposta, inicialmente a 16 acusados, mas posteriormente 12 deles conseguiram sua comutação.

Quatro foram no final executados. Eram eles os libertos Jorge da Cruz Barbosa, cujo nome iorubá era Ajahi, carregador de cal; Pedro, nagô, carregador de cadeira, escravo de um negociante inglês; Gonçalo e Joaquim, ambos escravos nagôs.

Os quatro foram executados por um pelotão de fuzilamento no Campo da Pólvora, no dia 14 de maio de 1835.

E assim se findava um dos episódios mais empolgantes da resistência escrava no Brasil.


Depois da revolta dos malês, a cidade de Salvador assistiu ao aumento do aparato policial sobre os escravos e demais descendentes de africanos que trabalhavam nas ruas da cidade.

O conceito de Jihad

Muitas pessoas acreditam que o termo Jihad signifique literalmente “guerra santa”, pois assim é difundido pela mídia e por autores que pouco sabem sobre o Islã. 
De origem árabe, o termo Jihad (vem da raiz J, H, D) significa esforçar-se, lutar, por algo louvável que se deseja, todavia, de acordo com o contexto, ele pode mudar de sentido.

Existem dois tipos de Jihad, a Grande Jihad e a Pequena Jihad. O termo literal em árabe para “guerra santa” seria harbun muqadassatu.( Essas informações básicas também estão disponíveis no site da Sociedade Beneficente Muçulmano do Rio de Janeiro. http://www.sbmrj.org.br/ )

 A grande-Jihad

Voltado para o campo espiritual e religioso, o termo Jihad significa a luta individual contra as imperfeições humanas que tendem a conduzir todos os homens ao mal. É a luta que cada ser humano tem de enfrentar para superar os vícios, as paixões, os defeitos e as fraquezas, pois essas afastam o homem de Deus. A surata supracitada é um bom exemplo dessa luta.

 A pequena-Jihad

Neste sentido, Jihad significa o direito que qualquer pessoa tem de enfrentar algo ou alguém que queira fazer o mal a si ou a sua família, de reagir à invasão de sua casa, sua cidade e até a sua pátria.

O termo Jihad usado pelo Profeta Muhammad foi justamente para combater as tribos politeístas que, constantemente, ameaçavam atacar os muçulmanos.

Sobre a revolta dos Malês, primeiramente, está claro que nem todos os negros que participaram do levante eram muçulmanos, assim como nem todas as práticas dos negros muçulmanos eram islâmicas, pois, na situação em que se encontravam aqui, era difícil praticar-se um islamismo genuíno.

Outra questão muito interessante de ser abordada é a natureza do levante malê, se teria sido Jihad (no sentido de uma luta “sagrada”) ou teria sido Harb (uma luta “profana”). Para Reis, a natureza, se sagrada ou não, da rebelião malê ainda não está esclarecida. Ele considera que a revolta foi um movimento complexo, cujo objetivo imediato era a liberdade. (SOBREIRA, 2010, p.177).

Uma pequena-Jihad no Nordeste brasileiro

Muitos pesquisadores intitularam erroneamente as lutas dos negros muçulmanos ocorridas no Brasil de “guerra santa”, numa tentativa talvez de mostrar que o islã se impõe pela força.

Apesar de cometer muitos erros em suas análises, todos têm em comum a opinião de que o islã foi a mola mestra das diversas sublevações ocorridas durante o século XIX no Brasil.

Seria errado usar o termo Jihad sem especificar que tipo seria, principalmente se associá-lo ao termo guerra santa, quando já vimos que este termo não tem nenhuma ligação com aquele.


Ou seja, existem controvérsias sobre o tema entre os pesquisadores quanto a natureza do movimento promovido pelos Malês, como se pode constatar com o relatado acima, e de acordo com o trecho abaixo.


Hoje, pesquisadores esclarecidos e íntimos do Islamismo, acreditam que o levante Malê foi, de fato, uma Pequena Jihad, idealizada por muçulmanos cativos juntamente com outros não muçulmanos, que se uniram por acreditar que era possível transformar um país abarrotado de contradições em uma terra onde todos os homens são submissos apenas a Deus.

A Revolta dos Malês foi, provavelmente, a primeira Jihad (pequena) ocorrida em toda América, pois os escravos islamizados lutaram para defender suas vidas, seus amigos, a liberdade e, acima de tudo, sua fé, assim “(...) o islã representou o refúgio dos humildes. Deu força espiritual, moral e organizativa a homens pobres livres que viviam subordinados aos poderosos protegidos da religião tradicional e manteve viva a esperança de libertação de milhares de escravos muçulmanos” (REIS,1986, p.115).


Em relação a revolta dos Malês, percebeu-se que não foi uma “guerra santa” ou um movimento “fanático”, como alguns pesquisadores classificaram, tentando associar esses termos a uma jihad, ainda que muitos nada soubessem sobre os conceitos de Jihad.

Podemos dizer que a Revolta dos Malês ocorrida em 1835 na Bahia, foi na verdade uma luta mais que justa, de pessoas condicionadas à força para a escravidão, que buscava por fim a secular condição desumana – privações, deportações, torturas, estupros e assassinatos sumários – que alguns homens impunham a outros homens, condições essas jamais permitidas pelo Alcorão, e que jamais seriam aceitas pelos escravos muçulmanos.

Somente pode intitular a Revolta dos Malês de Jihad, se se conhecer bem os seus significados, sagrados e profanos; aí, sim, poder-se-ia dizer que houve, no século XIX, em terras brasileiras, uma jihad, uma Pequena-Jihad islâmica.

Ou seja, como mencionado anteriormente, a consequência dessa verdadeira epopéia dos Malês no âmbito religioso ainda permanece pouco conhecida e estudada

Para finalizar adiciono um trecho de Manuela de Novaes e Silva Alves que diz: ”Para concluir, aponto a necessidade de se destacar o verdadeiro lugar do negro islamizado no Brasil, como agente modificador do curso dos acontecimentos no final do período colonial e nos primeiros anos do império.
O islamismo transplantado para o país foi um importante fator de aglutinação na luta negra e o tema merece ser estudado a fim de contribuir para a construção da identidade e memória negra.
A luta desses escravos foi e deve continuar sendo um importante motivo de orgulho para os negros deste país”.

De minha parte, resta agradecer a leitura e sinceramente espero que a disponibilização do seu tempo para isto, tenha atingido minimamente suas expectativas.
 

                          

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